sábado, 15 de março de 2014

Reestruturar ou não reestruturar, eis a questão

Não sei qual era o montante da dívida pública da Dinamarca no tempo do príncipe Hamlet, nem o da Inglaterra no tempo de Shakespeare. Até é possível que ninguém o saiba ao certo. Mas a questão hoje já não é “Ser ou não ser” sem mais, é “Ser ou não ser sustentável” ou, dito de outra maneira, reestruturar ou não reestruturar. O manifesto dos 70 teve o mérito de fazer agitar as águas e levar algumas pessoas a interessar-se por outros assuntos que não sejam futebol. Há muito que não havia tanta repercussão mediática e bloguística sobre um assunto realmente importante. Não me atrevi a dar uma opinião pessoal sobre o assunto até ter oportunidade de ler o manifesto na íntegra. Nessa altura verifiquei que já ia atrasado e que já toda a gente ou quase se tinha manifestado sobre o manifesto. Assim, decidi fazer uma pequena antologia das intervenções que me pareceram mais acertadas. O resultado exprime a minha opinião.

Em primeiro lugar, Tavares Moreira, no Quarta República defende que «avançar uma proposta de reestruturação sem antes ou simultaneamente cuidar de apresentar um projecto sério de Reforma do Estado parece-me algo de semelhante à velha ideia de “por o carro à frente dos bois”, suscitando um elevado risco de “moral hazard”» e que «os efeitos de uma iniciativa de reestruturação da divida tal como é sugerida pelo Manifesto, acabariam por ser totalmente opostos aos enunciados pelos seus ilustres subscritores...»
Outras intervenções no Quarta República juntaram argumentos à discussão. Pinho Cardão, por exemplo, num texto bem elaborado, lembra que «Nenhuma reestruturação é eficaz se não der prioridade ao equilíbrio económico.» e que a reestruturação abrangeria Certificados de Aforro e Certificados do Tesouro detidos por particulares, para além de fundos da Segurança Social e de bancos.

Ainda no Quarta República, Ferreira de Almeida recomenda a leitura do documento do FMI “Sovereign Debt Restructurings 1950–2010: Literature Survey, Data, and Stylized Facts” que considera «elucidativo em muitos aspectos.» Não li e não sei se alguma vez chegarei a ler as 128 páginas deste documento, mas procurei os capítulos mais pertinentes para o caso português e dei com dois aspectos que me parecem muito importantes.Defende o FMI que «a cut in face value (debt reduction) … [and] a lengthening of maturities (debt rescheduling) … both types of debt operations can involve a “haircut,” i.e., a loss in the present value of creditor claims.» Muito claro: a reestruturação que o manifesto defende é considerada pelo FMI um haircut, pois, como explica mais adiante, «most market observers use a present value approach to calculate the scope of creditor losses (or “haircut”) implied in a debt exchange». No mesmo documento lê-se: «Debt restructurings can have drastic adverse consequences for economic growth, trade, capital flows, banks and other financial institutions.» É difícil ser mais claro. Não admira, portanto, que o FMI se tenha agora pronunciado contra a solução defendida pelos 70. Suponho mesmo que, se algum dos 70 tivesse tido acesso ao documento do FMI antes de assinar o manifesto, se teria abstido de o fazer.

Mário Amorim Lopes publicou também n’O Insurgente um Manifesto por um Orçamento Equilibrado que teve um êxito que surpreendeu o próprio promotor, tendo atingido até agora a bonita soma de 592 subscritores. Este outro manifesto rebate ponto por ponto os argumentos a favor da reestruturação defendidos pelos 70.
No mesmo blog, Rodrigo Adão da Fonseca juntou alguns argumentos pertinentes, como a reestruração não depender da vontade dos portugueses, de parte substancial da dívida estar em mãos nacionais e finalmente que reestruturar equivale a adiar as reformas.

No Corta Fitas, José Mendonça da Cruz conclui que «Ferreira Leite, Capucho, Bagão e António Saraiva querem um programa socialista e estatizante» e lamenta a «triste companhia...», fazendo ainda notar que o manifesto ignore ou desvalorize «todas … as melhorias dos indicadores. Ignora a descida do défice, a diminuição do desemprego e o aumento do emprego; ignora o aumento persistente das exportações; ignora a novidade do saldo positivo da balança comercial -- uma novidade de décadas; ignora o saneamento das empresas públicas de transportes e outras; ignora a queda das taxas de juro para níveis baixos recorde; ignora a racionalização dos gastos na saúde e na justiça; ignora a contenção salarial; ignora, convenientemente, a acção do ministério das Finanças e do IGCP» e conclui que o desejo dos signatários é que «os estrangeiros que paguem a crise». Vasco Lobo Xavier mostra que a comparação da situação actual de Portugal com a da Alemanha do pós-guerra é disparatada.

Mais recentemente, e saindo do mundo da blogosfera, José Gomes Ferreira escreveu uma carta, publicada na página da SIC-Notícias, dirigida a «João Cravinho, Manuela Ferreira Leite, Bagão Félix, Ferro Rodrigues, Sevinate Pinto, Vitor Martins e demais subscritores do manifesto», em que apresenta as previsíveis consequências de se tentar negociar uma reestruturação da dívida e lembra que «Portugal já fez e continua a fazer uma reestruturação discreta da nossa dívida pública», carta esta que originou ainda mais comentários e respostas.

Por tudo isto, e muito mais que poderia acrescentar, abstenho-me de comentar o manifesto dos 70 (que afinaL são 74, ao que parece), já que as razões que poderia apresentar para a minha profunda discordância já foram mais que debatidas. Limito-me a dizer que apenas o facto de estarem entre os subscritores Louçã e Boaventura Sousa Santos deveria ter sido suficiente para pessoas como Manuela Ferreira Leite desconfiarem e não associar o seu nome a esta manobra.

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